Crônicas do solteiro moderno - #01 O cara que escrevia errado

Noite de sexta, nada para fazer. Chego do trabalho cansada de mais um dia de jornada, mas essa sexta não vou me permitir ficar largada no sofá, assistindo Game of Thrones com um balde de pipoca. 

Ligo para uma amiga, que agora está ocupada demais para me atender. 

Tomo um banho relaxante enquanto penso no próximo passo. 28 anos, procurando.

Relacionamentos? Sérios, alguns. Nem tanto, outros tantos. Tinha vindo de uma desilusão recente, que teimava em passar por mim no feedback do Facebook desfilando sua felicidade nada modesta. Tampouco vou pensar nisto. 

O que fazer sozinha numa sexta à noite, sem saco para TV?

Uma gelateria recém inaugurada no fim da rua. Noite de verão, calor excessivo, um sorvete não parece nada mau para uma solteira fim de festa. 

Não que eu fosse entendida no assunto, mas não estava tão ruim naquele vestido recém comprado. Era de um floral delicado, com um X nas costas. Prendi o cabelo de modo desleixado, calcei uma rasteira e desci as escadas. Era só um sorvetinho.

Sentei no balcão, onde uma mesa alta parecia ser convite para gente solitária. Outras tantas mesas se preenchiam com famílias simpáticas e jovens casais. Talvez não fosse aquela minha escolha certa. Por um momento, me imaginei numa cena de filme antigo, tomando Gim-tônica no canto excluído de uma bar qualquer. Poderia ser uma piña colada. Ou um daiquiri de banana. Ou uma caipirinha. 

Mas até as pessoas sozinhas não pareciam tão sozinhas. Uma moça em situação similar à minha, sozinha no balcão, fotografava seu blue ice com o celular. Se ela estava sozinha, talvez quisesse postar a foto no Instagram sob uma enxurrada de hashtags para atestar que estar só não era estar infeliz. 

Então, um rapaz parou do meu lado e puxou um dos banquinhos.


Eu olhava o cardápio com tanta atenção que parecia ler o rumo da minha vida.

- Pistache e chocolate, por favor. - Ele disse para a balconista.

Pareceu decidido. E eu tinha dez minutos apenas tentando escolher um sabor entre os mais de 50. Provavelmente eu fiz uma careta para a escolha de sabores dele, porque parece que isso foi a deixa para se aproximar.

- Já experimentou o milk-shake de abacaxi? - Me perguntou
- Não ainda. 
- Ouvi dizer que o daqui é muito bom. O que você pediu?
- Nada, ainda.
- Difícil escolher entre tantos sabores, não é? Resolvi experimentar aleatoriamente, os dois primeiros sabores que batesse os olhos. - Aquilo me pareceu uma boa tática - Se estiver confusa, por que não tenta fazer o mesmo? Pode ser que sejam dois sabores que você não goste de cara, mas passe a apreciar depois de experimentar...

Aquilo parecia uma propaganda. Talvez uma auto propaganda.

- À propósito, meu nome é Antônio.

E era. Uma tentativa desesperada de não terminar a noite sozinho.

- Cíntia.

Homem, sem aliança em nenhum dos dedos, nem marcas. Mediano, um pouco fora de forma, mas ainda não estava gordo. Olhos contentes, dentes um pouquinho separados, uma barba por fazer. As entradas no cabelo entregavam que ele não era mais um menino e que seria careca. Aliás, o cabelo já em ponto de corte era um pouco cacheado, tendendo para a rebeldia. Talvez tivesse uns 30 anos. Talvez estivesse no Tinder.

- Prazer em conhecer, Cíntia.

O assunto pareceu morrer, mas fomos salvos pela balconista que perguntou se eu tinha escolhido.

- Milk-shake de abacaxi com hortelã.

Ele sorriu com minha escolha. Esperei que não perguntasse "Então, você vem sempre aqui?"

- Gosto desse sabor - Ele disse, sucinto.

O sorvete dele chegou. 

Então, estranhamente, engatamos uma conversa. Antônio comentou que tinha se mudado recentemente, era um homem de poucos amigos, estava num emprego novo. Bancário. Chegou meu milk-shake. Eu divaguei sobre os problemas no escritório, sobre o vazamento da pia da cozinha, o filme que lançou semana passada. Trocamos telefones.

Uma noite dessas, Antônio me mandou uma mensagem no Whatsapp. Parecia tímido e desconfortável.

[2/5 21:50] Antônio: Oi, tudo bem?

[2/5 21:50] Cíntia: Tudo bem, e você?

[2/5 21:50] Antônio: Tranquilo

escrevendo...


escrevendo...


escrevendo...



A quantidade de vezes que aquela palavra apareceu verde e sumiu me fez pensar que ele estava reescrevendo a Bíblia.

[2/5 21:56] Antônio: E aí já assistiu aquele filme?

[2/5 21:56] Cíntia: Não ainda

[2/5 21:57] Antônio: Vc sempre diz não ainda 

[2/5 21:57] Antônio: rsrs

Reli. Entendi a pressa e a citação. Eu até usaria aspas, mas tudo bem. Ninguém é obrigado.

escrevendo...


escrevendo...


escrevendo...

[2/5 21:59] Antônio: Vai sair amanhã?

[2/5 21:59] Cíntia: Não, vou aproveitar o domingo de folga e ver se acho alguém pra consertar aquele vazamento

[2/5 22:00] Antônio: Posso tentar se vc quizer

"quizer..." O "z" está próximo do "s" no teclado. Seria pior se ele tivesse escrito "poço" no lugar de "posso". Esperei que ele corrigisse na linha seguinte, mas não aconteceu. Fiquei desapontada.

*****

Antônio morava umas duas quadras depois de mim. Daí a gelateria. Bem no meio do caminho.

[2/5 22:01] Cíntia: Tudo bem, se não for piorar a situação ;D

[2/5 22:02] Antônio: tirando o vazamento
[2/5 22:02] Antônio: tem algo pra fazer no domingo de tarde?

[2/5 22:02] Cíntia: Não... ainda 

[2/5 22:02] Cíntia: kkkkkkk

Aquela piada parecia inevitável. Mas parece que o Antônio não entendeu. E um pouco da conversa morreu ali.

[2/5 22:02] Antônio: o que acha de agente vê o filme depois que eu concertar sua pia?

"agente". "vê". "concertar". Pára, Cíntia. Deixa de ser tão preconceituosa.

[2/5 22:03] Cíntia: Tudo bem, qual a seção que vc quer pegar?

[2/5 22:03] Antônio: Vou vê aqui...

[2/5 22:07] Antônio: Tem uma às 17:00, outra às 19:00. Se agente ir mais cedo podemos jantar depois... o que acha? 

"Vou vê"."agente... podemos". Cada hora parecia pior. 

[2/5 22:07] Cíntia: Tá bom

[2/5 22:08] Antônio: Então passo na sua casa quatro da tarde
[2/5 22:08] Antônio: Concerto a pia e nós vamos pro cinema.

Se ele não consertasse aquela mania de escrever "concerto", até o fim do dia ele ficaria desconcertado. Sim, com "c".

*****

Antônio foi bem pontual. Quando ele chegou, eu ainda estava com roupas de ir na padaria. Ele chegou bem barbeado, cheiroso, com uma camisa branca bonita arregaçada e jeans. Até tinha cortado o cabelo.

- Desculpa, Antônio. Ainda não comecei a me arrumar. Mas eu sou rápida. Não tenho nenhuma ferramenta aqui, tem problema?
- Tudo bem, eu trouxe uma mala cheia delas. - ele sorriu - Você por acaso tem alguma camisa velha, ou algo parecido, pra eu vestir enquanto conserto a pia?

Não, Antônio. Eu moro sozinha. Nada meu caberia em você. 

A não ser aquela camisa do Ramones que eu usava para pintar o cabelo.

Hey, ho, let's go.

- Vou dar uma olhada aqui.

Entrei no quarto e encontrei a tal camisa velha e manchada. Quando cheguei na cozinha, Antônio estava sem camisa. A camisa branca muito bem passada pendurada na cadeira. Não sei o que se passou na mente daquele homem, se ele estava tentando me seduzir, mas ele parecia muito confortável com sua nudez superior. Estava deitado debaixo da pia, o tronco com uma cor diferente das mãos, talvez pelo uso constante de camisas sociais no trabalho. Não era um cara muito peludo, mas os poucos pelos se agrupavam ao redor da barriga e do peito, meio ralos. Tinha umas dobrinhas onde talvez fossem os músculos, e uma leve protuberância no abdômen, que podia ser de cerveja e churrasco como qualquer homem de 30. Os ombros cheios de sinais.

- Antônio, aqui a camisa. Vê se dá em você. Enquanto você conserta, vou me arrumando aqui, ok? Se terminar antes de mim, pode ligar a TV, fique à vontade. 

Se for possível ficar mais à vontade do que você está, sem camisa embaixo da minha pia...

Me arrumei com um pouco de pressa, mas tentei caprichar pra ficar à altura da produção dele. Vestido, sandalinha média, batom rosado, maquiagem leve. Brinco simples e aquele perfume chique que eu ganhara de presente. Produção de meia hora. 

- Pronto, Antônio, podemos ir? - Eu disse ao homem sentado no sofá da sala assistindo o jogo.
- Você está linda. - Ele disse, esboçando um sorriso
- Obrigada - Eu devo ter ficado vermelha com o elogio.
- Fiz uma gambiarra ali na pia, mas talvez seja melhor você chamar um encanador profissional. 
- Tudo bem, já valeu, muito obrigada.

Descemos as escadas até a portaria do prédio. Antônio apontou para um carro popular prata do outro lado da rua. Simples, mas limpo e cheiroso. Ouvi dizer que os carros refletem os donos. 

Antônio era muito gentil, o filme foi bom. Jantamos num restaurante legal perto do cinema. Lá pelas dez, ele foi me deixar em casa.

Estacionou o carro e, com toda naturalidade, fez uma despedida simples.

- Muito obrigado, a noite foi ótima.
- Obrigada você. Foi muito divertido.

Então ele soltou o cinto de segurança e foi se aproximando como quem ia me beijar. Eu sabia o que viria a seguir, até aceitei o beijo, mas outra coisa foi passando em minha cabeça... "agente". "vê". "concertar"...

Aquele cara escrevia tudo errado. 

Afastei Antônio levemente, pra ele perceber que já bastava.

- Ok, já vou, boa noite. Amanhã, trabalho, né? - Qualquer desculpa esfarrapada valeria pra fugir daquele "agente somos".

Ele sorriu.

- Tudo bem, se falamos depois.

Me mate. Eu nunca mais iria falar com aquele cara. Não depois do "se falamos".

*****

Contei toda a história do cinema àquela amiga que não tinha me atendido na semana que eu conheci Antônio.

[3/5 22:32] Vanessa: Se ele foi tão gentil, agradável, se o passeio foi bom, qual foi o problema?

[3/5 22:32] Cíntia: Ele escrevia tudo errado. 

Respondi, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Copiei toda a conversa que tivemos e mandei pra ela.

[3/5 22:35] Vanessa: Ok, Cíntia, você é exigente, entendo, mas não acha que está exagerando?

[3/5 22:35] Cíntia: Que nada, não tenho paciência pra gente que tem preguiça de ler e não aprende a escrever direito. Meus olhos doem. Meus ouvidos também.

Vanessa era professora de português, ela haveria de concordar comigo.

Então ela copiou e colou um trecho do que eu mesma tinha dito.

[3/5 22:36] Vanessa: A propósito, na frase "qual a seção que vc quer pegar?" a palavra "seção" está mal aplicada. Quando se refere a cinema, a palavra é "sessão". "Seção" é sinônimo de corte.

Então, em dez segundos, eu me tornei o cara que escrevia errado.

Interessante como a vida dá um jeito de fazer a gente passar vergonha, né?


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